Acabei de ler o livro “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”, que é uma seleção de trechos do diário escrito por Charles Bukowski em seus últimos anos de vida. O ódio à mediocridade demonstrado pelo escritor norte-americano, nascido na Alemanha, me fez lembrar a afirmação de Deleuze de que a vergonha de pertencer à raça humana é fonte de potência criadora tanto na filosofia quanto na literatura e na arte. Transformar vergonha e asco em potência criadora... Deleuze sabia realmente das coisas.
A cada vez que ia ao hipódromo (e ele ia quase todo dia), Bukowski reabastecia seu peito de ódio ao vazio que é a vida da grande maioria de nós. Quando se sentia sem inspiração precisava trazer à tona toda essa raiva. Abaixo, transcrevo um fragmento do último dia de seu diário:
“Por que há tão poucas pessoas interessantes? Em milhões, por que não há algumas? Devemos continuar a viver com esta espécie insípida e tediosa? Parece que seu único ato é a violência. São bons nisso. Realmente florescem. Flores de merda, emporcalhando nossas chances. O problema é que tenho que continuar a me relacionar com eles. Isto é, se eu quiser que as luzes continuem acesas, se eu quiser consertar esse computador, se eu quiser dar a descarga na privada, comprar um pneu novo, arrancar um dente ou abrir a minha barriga, tenho que continuar a me relacionar. Preciso dos desgraçados para as menores necessidades, mesmo que eles me causem horror. E horror é uma gentileza.
“Mas eles pisoteiam a minha consciência com seu fracasso em áreas vitais. Por exemplo, todos os dias, volto do hipódromo apertando o rádio em diferentes estações, procurando música, música decente. Tudo é ruim, insípido, sem vida, sem melodia, indiferente. Mesmo assim, algumas dessas composições são vendidas aos milhões e seus criadores se consideram verdadeiros Artistas. É horrível, uma idiotice terrível entrando em jovens cabeças. Eles gostam disso. Cristo, dê merda a eles, e eles comem. Não conseguem discernir? Não conseguem ouvir? Não sentem a diluição, o mofo?
“Não posso acreditar que não haja nada. Continuo tentando novas rádios. Meu carro tem menos de um ano, mas a tinta preta do botão que aperto já está totalmente gasta. Agora o botão está branco, marfim, olhando para mim.
“Bem, é, existe a música clássica. Tenho que me acostumar com isso. Mas sei que ela vai estar sempre lá para mim. Escuto isso três a quatro horas por noite. Mas ainda continuo procurando outro tipo de música. (...) Pense em todas as pessoas vivas que nunca ouviram música decente. Não se admira que seus rostos estejam caindo, não se admira que matem sem pensar, não se admira que esteja faltando o coração.
(...)
“Os filmes são tão ruins quanto a música. Você ouve ou lê a crítica. Um grande filme, dizem. E daí saio para ver o tal filme. E sento lá me sentindo um grande idiota, me sentindo roubado, enganado. Posso adivinhar a próxima cena antes de acontecer. E os motivos óbvios dos personagens, o que os move, o que desejam, o que é importante para eles é tão infantil e patético, tão enfadonho e grosseiro. As partes românticas são irritantes, velhas. Bobagens preciosistas.
“Acho que a maioria das pessoas vê filmes demais. E, com certeza, os críticos. Quando dizem que um filme é ótimo, querem dizer que é ótimo em relação aos outros filmes que viram. Perderam a visão geral. São martelados com cada vez mais filmes novos. Simplesmente não sabem, estão perdidos no meio daquilo. Esqueceram o que é realmente ruim, que é a maior parte do que assistem.”