quinta-feira, setembro 04, 2008

O Século de Sartre (parte final): A verdadeira face de Bernard-Henri Lévy

A grande questão para Lévy neste livro é, como já disse, seu ataque ao pensamento revolucionário. Ele “releva” os “deslizes” de Sartre (seu apoio ao comunismo, sua defesa da revolução) e os atribui uma ingenuidade comum naquele momento histórico, a uma decadência intelectual e a uma confusão mental que imagina ou finge imaginar no filósofo. Mas ele só “releva” isso, justamente pra apontar que são deslizes, que homens responsáveis não apóiam uma revolução, ou melhor: nem acreditam em revoluções:

“As revoluções mais bárbaras não são as revoluções fracassadas, mas as que chegaram a seu termo; quanto mais vitoriosa a revolução, mais funesta e criminosa ela é... Sartre, enfim, por definição, não sabe nada disso.” (Lévy, op. cit., p. 412).

O que seria da liberdade de pensamento que Lévy tanto diz proteger se, por exemplo, o ocidente não houvesse passado pela Revolução Francesa? Ou, pensemos assim: se com todo o enfrentamento que recebeu, o capitalismo já é como é, uma máquina de moer gente, imaginemos como seria sem seus questionadores, sem os revolucionários que deram e dão suas vidas para combatê-lo? Mas, pelo visto, Lévy, enfim, por definição, não sabe nada disso. Que tipo de pensador afirma existir uma “nocividade intrínseca da própria idéia de revolução” (ibid)? Respostas possíveis: um pensador que se faz porta-voz da mentalidade burguesa; um ingênuo acomodado que acredita na filantropia, na bondade da classe dominante; um autista político que crê que os opressores, sem violência, sem enfrentamento, entregarão seu poder e compartilharão suas riquezas; um reacionário que considera que na manutenção do sistema está a verdadeira felicidade.

Uma coisa é se portar como Camus e se negar a aceitar os tremendos sacrifícios impostos por uma vanguarda revolucionária em nome de um futuro possível; ou como Debord, que tão grandemente, alucinadamente e artisticamente defende a Revolução em seu Sociedade do Espetáculo, mas ao mesmo tempo acusa a ditadura burocrática soviética e a considera tão vil quanto o capitalismo; ou como Deleuze, que sabe que só da revolta com o presente se pode lutar pela construção de um futuro digno, mas que combate todos os tipos de opressão e sabe que não se pode combater o fascismo aprisionando o pensamento dos homens; ou como Foucault, para quem a “única garantia de liberdade é a própria prática da liberdade” (1984: 245); ou como Negri, que acredita no poder da multidão e não no do Estado repressor. Outra coisa é se portar tão pequenamente, tão burguesamente, quanto o autor d’O Século de Sartre. Ser a favor da Revolução, não é ser a favor do stalinismo. Ser a favor de um socialismo, um sistema capaz de colocar como seu centro a própria sociedade, a dignidade humana, que luta para que todos tenham as mesmas condições de possibilidade de se desenvolver, ser a favor desse tipo de idéia, definitivamente não é o mesmo que ser a favor do gulag.

Mas o autor da biografia aqui analisada não é mesmo simpático aos homens que decidem lutar. Ele assumidamente sente é saudades do “dandismo amável” (op. cit., p. 501) do jovem Sartre; pobre Lévy. Como se o primeiro Sartre tivesse se deixado contaminar pelo vírus do marxismo e a partir de então, doente, só cometesse equívocos e não como se o amadurecimento do autor o levasse a pensar no outro, a romper com sua antiga visão de mundo e se engajar na luta pelos sem voz, como se seu período de confinamento no campo nazista de prisioneiros não o tivesse feito enxergar o sofrimento alheio - e uma vez o tendo visto, nunca mais conseguiu ignorá-lo. Toda a evolução sartriana em direção a um pensamento para o outro, para a justiça, em prol e ao lado dos esfarrapados do mundo é reduzida, por Bernard-Henri, a um deslize intelectual que teria levado o velho filósofo a se igualar à ingenuidade de pensamento do Autodidata (personagem de A Náusea). Quanto mais Sartre evoluiu, quanto mais leu, viu, sentiu, viveu, mais se engajou, mais se tornou revolucionário. Errou algumas vezes sim, como todos estamos fadados a errar, mas errou com a coragem de quem sempre tornou seu pensamento público, errou para o mundo, sem medo de julgamentos. Sabia que assumir publicamente todas as suas idéias trazia uma enorme e pesada responsabilidade e viveu intensamente cada escolha, cada palavra, cada atitude. Viveu pela liberdade, não apenas a sua, mas a dos outros. Em determinados momentos, se alinhou com regimes que em nome da liberdade, paradoxalmente, tiraram a liberdade dos homens, mas sempre se manteve aberto para rever suas posturas. Sim, por vezes o filósofo engajado errou. Mas acertou também, e muito, como o próprio Lévy admite. Mas a questão é que acertou muito além do que Lévy admite.

Pra terminar, pensando na postura de Bernard-Henri Lévy e tentando enxergar sua verdadeira face escondida atrás da máscara de intelectual e bom escritor, fiquemos com as palavras de um homem que fez de sua vida uma luta pela liberdade, um brasileiro que uniu teoria e práxis e foi expulso de sua terra por isso, Paulo Freire:

“Os que inauguraram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam situação concreta em que se geram os demitidos da vida, os esfarrapados do mundo” (...) “Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua ‘generosidade’, são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme se situem, interna ou externamente, de ‘essa gente’ ou de ‘essa massa cega e invejosa’, ou de ‘selvagens’, ou de ‘nativos’, ou de ‘subversivos’, são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os ‘violentos’, os ‘bárbaros’, os ‘malvados’, os ‘ferozes’, quando reagem à violência dos opressores.” (Freire, 2005: 47-8)


DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
FOUCAULT, Michel. Space, Knowledge, and Power. 1984.
LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.