segunda-feira, outubro 06, 2008

Insônia e suor



Gosto dessas noites quentes. Gosto dessa minha insônia bêbada e exausta, desse suor que nunca seca completamente – o corpo grudando no lençol. Camila, agora tão calma, com a luz do abajur iluminando sua bunda e suas coxas, dorme muda e linda, como era de se esperar. Há bem pouco, gritava, mordia e chupava como se isso fosse tudo o que existia, todo o possível, tudo o que se poderia tirar de uma vida.


Tupã morreu depois de se arrastar por meses, sua coluna foi virando quase que um ponto de interrogação; Rani chorou uma noite toda, vomitou sangue, cagou uma água negra e, de olhos arregalados, deixou de respirar; Wall sumiu, saiu pra nunca mais voltar... e é tão estranho pensar que nunca vou saber o que aconteceu.


Se eu fosse tomar banho, pra tirar esse suor e esse cheiro de buceta e de saliva do meu corpo, eu relaxaria, a insônia acabaria e eu só iria acordar quando a vontade de mijar vencesse o sono. Mas aí, eu desmancharia isso tudo, essa noite quente e pesada, essa bunda e essas coxas morenas iluminadas pela luz fraca e amarelada do abajur que faz tudo parecer irreal.


Tio Arthur, quando vinha pra almoçar nos finais de semana, pedia pra eu prender o Wall no quintal. Cara escroto, na minha casa, comendo a comida que a minha mãe preparava, e ainda mandava o coitado do Wall pra fora. Naquela tarde, bebeu tanto que eu sabia que uma hora ele iria dizer alguma provocação, como sempre, e eu poderia finalmente fazer o que queria. Mas ele estava feliz, tinha ganhado uns reais no jogo do bicho e só falava gentilezas pra minha mãe e contava piadas pro meu pai. Eu assistia a tudo e torcia para que a bebida o levasse a falar qualquer besteira, por pequena que fosse. A tarde acabou e ele pegou as chaves do carro e a carteira que tinha deixado em cima da cristaleira – nenhuma provocação, nenhuma piada de mal gosto... eu o acompanhei até a porta e cuspi no meio daquela testa brilhante: “Você ficou maluco, moleque?”, dei três socos, os dois primeiros na cara, o terceiro no ar porque ele já estava caído. Seu nariz sangrava muito, cada vez mais, e ele gemia e minha mãe gritava, ele gemia, ela gritava... não sei bem o que aconteceu depois, lembro só de tocar o interfone da Patrícia e de que trepei muito naquela noite e acabei dormindo no apartamento dela por cinco dias.


Já está amanhecendo. A luz que entra pela janela estraga tudo e eu nem me sinto mais tão bêbado, o vento leve também vindo da janela invade o quarto e batendo no meu corpo suado me desperta. Todos esses carros, que a essa hora já estão indo e vindo, buzinando, acelerando e freando, todas essas pessoas com pressa, sempre atrasadas, todo esse barulho e movimento lá fora, nas ruas, tudo isso me deixa cansado.


Wall ficava amarrado pelo pescoço, no quintal de casa. Tio Arthur se sentava à mesa, contava piadas e bebia cerveja. Os dois saíram de casa e não voltaram. Um dia, o Wall sumiu e ninguém da vizinhança soube dizer nada que ajudasse a encontrá-lo. Tio Arthur, depois daquela tarde, também não voltou, mas não sumiu, continuou jogando no bicho, bebendo cerveja, mas passou a almoçar na casa de um amigo da sinuca. Morreu com um tiro na cara, um ano depois. Parece que reagiu a um assalto.


Ela murmura ou geme por causa do frio, sua bunda morena está arrepiada, tenta se cobrir, mas puxo o lençol e não deixo. Ela se encolhe toda, mas não acorda... Saber que lá fora existem tantos carros indo e vindo, tantas pessoas apressadas buzinando, tanto barulho e movimento me deixa realmente muito cansado.

quinta-feira, setembro 04, 2008

O Século de Sartre (parte final): A verdadeira face de Bernard-Henri Lévy

A grande questão para Lévy neste livro é, como já disse, seu ataque ao pensamento revolucionário. Ele “releva” os “deslizes” de Sartre (seu apoio ao comunismo, sua defesa da revolução) e os atribui uma ingenuidade comum naquele momento histórico, a uma decadência intelectual e a uma confusão mental que imagina ou finge imaginar no filósofo. Mas ele só “releva” isso, justamente pra apontar que são deslizes, que homens responsáveis não apóiam uma revolução, ou melhor: nem acreditam em revoluções:

“As revoluções mais bárbaras não são as revoluções fracassadas, mas as que chegaram a seu termo; quanto mais vitoriosa a revolução, mais funesta e criminosa ela é... Sartre, enfim, por definição, não sabe nada disso.” (Lévy, op. cit., p. 412).

O que seria da liberdade de pensamento que Lévy tanto diz proteger se, por exemplo, o ocidente não houvesse passado pela Revolução Francesa? Ou, pensemos assim: se com todo o enfrentamento que recebeu, o capitalismo já é como é, uma máquina de moer gente, imaginemos como seria sem seus questionadores, sem os revolucionários que deram e dão suas vidas para combatê-lo? Mas, pelo visto, Lévy, enfim, por definição, não sabe nada disso. Que tipo de pensador afirma existir uma “nocividade intrínseca da própria idéia de revolução” (ibid)? Respostas possíveis: um pensador que se faz porta-voz da mentalidade burguesa; um ingênuo acomodado que acredita na filantropia, na bondade da classe dominante; um autista político que crê que os opressores, sem violência, sem enfrentamento, entregarão seu poder e compartilharão suas riquezas; um reacionário que considera que na manutenção do sistema está a verdadeira felicidade.

Uma coisa é se portar como Camus e se negar a aceitar os tremendos sacrifícios impostos por uma vanguarda revolucionária em nome de um futuro possível; ou como Debord, que tão grandemente, alucinadamente e artisticamente defende a Revolução em seu Sociedade do Espetáculo, mas ao mesmo tempo acusa a ditadura burocrática soviética e a considera tão vil quanto o capitalismo; ou como Deleuze, que sabe que só da revolta com o presente se pode lutar pela construção de um futuro digno, mas que combate todos os tipos de opressão e sabe que não se pode combater o fascismo aprisionando o pensamento dos homens; ou como Foucault, para quem a “única garantia de liberdade é a própria prática da liberdade” (1984: 245); ou como Negri, que acredita no poder da multidão e não no do Estado repressor. Outra coisa é se portar tão pequenamente, tão burguesamente, quanto o autor d’O Século de Sartre. Ser a favor da Revolução, não é ser a favor do stalinismo. Ser a favor de um socialismo, um sistema capaz de colocar como seu centro a própria sociedade, a dignidade humana, que luta para que todos tenham as mesmas condições de possibilidade de se desenvolver, ser a favor desse tipo de idéia, definitivamente não é o mesmo que ser a favor do gulag.

Mas o autor da biografia aqui analisada não é mesmo simpático aos homens que decidem lutar. Ele assumidamente sente é saudades do “dandismo amável” (op. cit., p. 501) do jovem Sartre; pobre Lévy. Como se o primeiro Sartre tivesse se deixado contaminar pelo vírus do marxismo e a partir de então, doente, só cometesse equívocos e não como se o amadurecimento do autor o levasse a pensar no outro, a romper com sua antiga visão de mundo e se engajar na luta pelos sem voz, como se seu período de confinamento no campo nazista de prisioneiros não o tivesse feito enxergar o sofrimento alheio - e uma vez o tendo visto, nunca mais conseguiu ignorá-lo. Toda a evolução sartriana em direção a um pensamento para o outro, para a justiça, em prol e ao lado dos esfarrapados do mundo é reduzida, por Bernard-Henri, a um deslize intelectual que teria levado o velho filósofo a se igualar à ingenuidade de pensamento do Autodidata (personagem de A Náusea). Quanto mais Sartre evoluiu, quanto mais leu, viu, sentiu, viveu, mais se engajou, mais se tornou revolucionário. Errou algumas vezes sim, como todos estamos fadados a errar, mas errou com a coragem de quem sempre tornou seu pensamento público, errou para o mundo, sem medo de julgamentos. Sabia que assumir publicamente todas as suas idéias trazia uma enorme e pesada responsabilidade e viveu intensamente cada escolha, cada palavra, cada atitude. Viveu pela liberdade, não apenas a sua, mas a dos outros. Em determinados momentos, se alinhou com regimes que em nome da liberdade, paradoxalmente, tiraram a liberdade dos homens, mas sempre se manteve aberto para rever suas posturas. Sim, por vezes o filósofo engajado errou. Mas acertou também, e muito, como o próprio Lévy admite. Mas a questão é que acertou muito além do que Lévy admite.

Pra terminar, pensando na postura de Bernard-Henri Lévy e tentando enxergar sua verdadeira face escondida atrás da máscara de intelectual e bom escritor, fiquemos com as palavras de um homem que fez de sua vida uma luta pela liberdade, um brasileiro que uniu teoria e práxis e foi expulso de sua terra por isso, Paulo Freire:

“Os que inauguraram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam situação concreta em que se geram os demitidos da vida, os esfarrapados do mundo” (...) “Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua ‘generosidade’, são sempre os oprimidos, que eles jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme se situem, interna ou externamente, de ‘essa gente’ ou de ‘essa massa cega e invejosa’, ou de ‘selvagens’, ou de ‘nativos’, ou de ‘subversivos’, são sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os ‘violentos’, os ‘bárbaros’, os ‘malvados’, os ‘ferozes’, quando reagem à violência dos opressores.” (Freire, 2005: 47-8)


DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FREIRE, Paulo. Pedagia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
FOUCAULT, Michel. Space, Knowledge, and Power. 1984.
LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

terça-feira, agosto 26, 2008

O Século de Sartre (parte II): Má-fé e revolução


O autor usa boa parte das páginas de seu livro para construir a imagem de analista qualificado e simpatizante do biografado (o livro é uma biografia filosófica, ou literária, já que se atém mais às obras e posturas políticas do biografado do que à sua vida pessoal), para depois atacar seu verdadeiro alvo, seu verdadeiro inimigo: o pensamento revolucionário – vejam bem, afirmo que Lévy não ataca apenas os abusos, assassinatos e ditaduras perpetrados em nome da revolução, ataca sim a própria idéia de pensamento revolucionário, de devir revolucionário.

Aos poucos, o caráter reacionário do autor ganha corpo e percebemos o quanto o assusta e enoja o pensamento para o outro, a ação pelo outro. Qualquer práxis e teoria que fujam do individualismo quase niilista por ele atribuído ao primeiro Sartre é território inimigo. Suas investidas não se dão apenas contra o segundo Sartre, de Crítica da Razão Dialética, o autor marxista e engajado, mas contra o pensar revolucionário em si e contra os pensadores da revolução. No ataque a Deleuze, por exemplo, fica claro que Bernard-Henri Lévy entrou em uma guerra na qual está disposto a usar qualquer arma que julgue eficaz, até mesmo a distorção deliberada: “Pode-se gostar de uma filosofia capaz de nos dizer que os avatares de um carrapato à espreita podem ter mais sentido e importância do que o sofrimento de um kosovar ou de um checheno?” (Lévy, op. cit., p. 228).

Será que o autor é tão burro assim, pra interpretar o pensamento deleuziano dessa forma brutalmente rasa e distorcida ou é um ato de má-fé? Pela qualidade de outras passagens e análises de seu livro, duvido de sua burrice. Como pôde dizer tais palavras a respeito de um filósofo que sempre defendeu a liberdade, a multiplicidade, o respeito à alteridade, um homem que combateu todos os tipos de fascismos, que amava a vida e acreditava no ato de tocar o real, incentivando a práxis libertária que cria jurisprudências ao agir sobre a realidade contra as injustiças. Como pôde fazer um julgamento tão leviano a respeito de alguém que lutava tanto pela liberdade humana, que sabia que o primeiro passo para conquistá-la está na decisão de travarmos uma guerra de guerrilhas dentro de nós mesmos, pois como possuímos subjetividades polifônicas, plurais, estamos o tempo todo sendo invadidos por forças externas: “O inconsciente é uma substância a ser fabricada, a fazer circular, um espaço social e político a ser conquistado” (Deleuze e Parnet, 1998: 94). Deleuze acreditava nas pequenas ações, acreditava na capacidade do homem de lutar pelo mundo:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.” (1992: 218)

O combate de Deleuze pela liberdade é tão vital, tão radical, que defende o desapego a qualquer forma de poder. Ele era um revolucionário, um verdadeiro revolucionário que sabia que “o sucesso de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações, nos enlaces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia” (Deleuze e Guattari, 1992: 229). Deleuze era contra qualquer Estado totalitário, contra qualquer possibilidade de despotismo e sabia que o pensamento revolucionário é renovado a cada dia, ao se questionar o presente, e nasce do descontentamento, do inconformismo com qualquer tipo de injustiça, da criatividade e depende da liberdade de ação e pensamento. Vemos, portanto, que o pensamento de Deleuze nada tem a ver com a caricatura que o autor d’O Século de Sartre fez. Assim sendo, a seguir, tentaremos descobrir qual é o pensamento de Bernard-Henri Lévy.

(continua...)



DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

sábado, agosto 23, 2008

O Século de Sartre – parte I

Com algum atraso, tive acesso a esse livro. Desde que a edição brasileira foi lançada, em 2001, eu estava com vontade de ler, mas nunca o suficiente pra gastar mais de 60 reais em um livro do Bernard-Henri Lévy. Mas, então, mês passado, eu achei um exemplar com aspecto de novo, sem uso mesmo, por 20 reais em um sebo no centro de São Paulo.

O livro é melhor do eu pensava, primeiro, porque Lévy escreve bem, o texto é fluido e agradável e as mais de 550 páginas passam muito fácil e rapidamente, segundo porque, como já sabia, a vida de Sartre é mesmo muito interessante e admirável, concorde-se ou não com suas posturas e palavras. Porém, é também um livro perigoso justamente porque Lévy é um bom escritor e sabe seduzir o leitor desinformado e levá-lo a aceitar com naturalidade suas posições e opiniões apresentadas como verdades simples. Por isso, considero que é uma boa obra somente pra quem já possui razoável leitura prévia sobre os assuntos tratados, principalmente a respeito de filosofia política.

Toda a primeira metade do livro se desenrola muito bem e até me surpreendi com um Bernard-Henri Lévy que se mostra grande admirador do que ele chama de “primeiro Sartre”, o autor de A náusea e d’O Ser e o Nada, um Sartre baseado, segundo o Lévy, em Stendhal e Espinosa, com um leve tempero de Nietzsche. O autor defende Sartre mesmo nas questões mais polêmicas de sua vida pessoal, como no caso de seu rompimento com Camus após o lançamento d’O Homem Revoltado. Não que ele ache que Sartre estivesse certo ao defender a esquerda enquanto Camus apresentava a constatação de que não se pode querer “libertar todos os homens escravizando todos, provisoriamente” (Camus, 1999, p.283), a questão é que Bernard-Henri Lévy age de maneira que eu não esperava e contextualiza historicamente a posição de Sartre, levando os leitores a compreendê-la; porém, só mais pra frente é que fui entender as reais motivações e estratégias do autor da biografia.


(Continua...)



CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.






segunda-feira, julho 14, 2008

Texto publicado n'A Broca Literária

Meu conto "Cicatrizes urbanas, massa de gente e de luz" foi publicado na revista A Broca Literária, da The Drill Press.


Daqui a uns dias eu postarei o texto aqui no blog.

terça-feira, junho 24, 2008

Aos novos idiotas da objetividade

O louco Nelson, trajando seus vestidos de noiva e vislumbrando beijos no asfalto, teve tempo e paciência de nos precaver contra os idiotas da objetividade, contra o copydesk - o cretino burocrata escravo da gramática da língua e também da gramática das relações de poder nas redações.


O tupiniquim maltrapilho idólatra da estúpida cultura do jornalismo estadunidense bradava: “Nada de adjetivações! Seja imparcial, seja objetivo! O bom repórter deve ser invisível!”.

Nelson, em resposta, apenas ria da vida ser como ele é. Ria por perceber como pequenos idiotas acumulavam grandes poderes e levavam a sério a pornochanchada que constituía seus reinados.

Os novos idiotas da objetividade não ocupam mais o praticamente extinto cargo de copydesk nas redações de nossos jornais. O diretor de redação não precisa mais do burocrata gramatical, pois hoje os repórteres já vêm domesticados de casa: subjetividades criadas, desde o nascimento, por nossas grandes figuras midiáticas, filhos da Globo e da Veja, felizes ruminantes de idéias pré-fabricadas e frases prontas, formados por faculdades de pedagogia tecnicista que ensinam a fazer um lead, mas os proíbem de pensar.

Hoje, quase todo cidadão tem um pouco de copydesk e teme e odeia os loucos parciais, passionais, tendenciosos que ousam dizer que o rei está nu e de pau duro e pronto pra meter na bunda de quem se curvar. Nosso cidadão-copydesk prefere seu existir anódino e falar de flores; mas, vejam bem, falar imparcialmente das flores, pra que ninguém se ofenda. As podres bases de suas vidas metrificadas, gramaticalmente corretas, seguras e cinzas, são abaladas a qualquer ruído autônomo, parcial e que assuma suas posturas e posições publicamente.

Os idiotas da objetividade contemporâneos, em uníssono, então, gritam: “Você é tendencioso até não mais poder, te odiamos!”. E como os idiotas da objetividade são o que são, meros pobres coitados de calças arriadas, se vêem ignorados, batem o pé, fazem bico, se descabelam e por fim suspiram sem forças: “Maldito engajado, queremos que nos deixe em paz com a objetividade de nossas vidas amorfas! Queremos a segurança de uma velhice tranqüila decorada com versos sobre amores, com belas rimas ricas e vazias. Por favor, nos deixe...”. Como se suas pobres rimas ricas sobre o nada de suas vidas supérfluas não fosse o que há de mais tendencioso, como se suas frases alienadas não servissem ao rei nu e excitado, como se a escrita e as idéias pudessem obedecer às leis dos cientistas que mandam que toda experiência, se repetida sob as mesmas condições materiais, deva apresentar os mesmos resultados em qualquer laboratório.

Nossas mentes deveriam ir muito além de nossos confortáveis e seguros quartos/laboratórios e nossas vidas deveriam servir a muito mais do que à luxúria dos reis. Pobres idiotas da objetividade são os mais tendenciosos de todos os seres, a diferença é que seguem felizes uma tendência que não nasce em seus peitos, mas no mercado.

Os idiotas são objetivos e livres: livres do fardo de pensarem por si próprios.

terça-feira, janeiro 08, 2008

Um homem bem-sucedido


“Aquelas poucas notas serviriam pra exorcizar toda humilhação. Com as mãos irritantemente tremendo, tirou do bolso o pequeno maço e o estendeu para que ela o tomasse.”

“- Po... po... pode conferir, tá... tá tudo aí. – Que raiva que ele sentia. Tinha ensaiado tanto essa curta frase e agora gaguejava desse jeito!”

“Uma, duas, três... estava realmente tudo ali. O valor combinado. Sentiu um certo orgulho depois que ela conferiu o dinheiro e o guardou na bolsa. Estava agora um pouco mais confiante. Ela precisava de seu dinheiro. Pouco mais de um minuto após ele tirar as calças, tudo estava acabado. Ela se levantou, vestiu a calcinha e, sem que uma palavra saísse de sua boca ou expressão dominasse sua face, saiu do quarto.”

“Um misto de satisfação e medo o tomou. Vestiu as calças e apressadamente também saiu do quarto e desceu as escadas em direção à rua. Sentia-se forte, poderoso. Aquela mulher linda, aparentemente intocável para um garoto de treze anos, havia trepado com ele... bastou um punhado de dinheiro. Aquelas garotinhas que o desprezavam não chegavam aos pés dela. E daí que seus colegas tinham namoradas e ele não? Nenhuma tinha o corpo tão belo quanto o da vadia que acabara de foder.”

“Ali, naquele quarto, entendeu o que era preciso para nunca mais se sentir ridículo - teria que ganhar bastante dinheiro. Quanto mais, melhor. E toda sua vida foi dedicada a isso. Estudou para o vestibular pensado na grana que ganharia; acordou cedo para ir ao escritório, dia após dia, calculando quanto receberia pelas férias vendidas; fez e rompeu amizades de acordo com o lucro que imaginasse obter ou perder com elas; casar-se-ia por dinheiro se tivesse qualquer atrativo além de seu próprio dinheiro, mas não conseguindo atrair mulher alguma com posses iguais ou superiores às suas, casou-se por covardia mesmo, medo de envelhecer sozinho.”

“Quando chegou aos quarenta, percebeu que estava bebendo demais, que era horrível acordar para ir trabalhar, que sua esposa era uma estranha e seu filho um pequeno idiota... que um segundo após gozar na cara de uma nova puta, tudo perdia o sentido e chegava a sentir falta de ar, como se a vida pudesse ser perdida assim, por descuido, por não ter respirado da forma certa. Tinha medo que roubassem seu carro, via em cada moleque ‘malabarista de sinal’ ou vendedor de balas um potencial assassino, começou a beber pra poder ir trabalhar. Foi ao psiquiatra e pediu:”

“- Um pouco de paz, por favor! Eu pago!”

“Pequenos comprimidos que pelo peso e custo valiam, talvez, mais que ouro. Engolia-os conforme o psiquiatra indicara e as coisas melhoraram: sorria sem entender o porquê de fazê-lo, tremia menos e não tinha mais tanto nojo da esposa nem ódio do filho.”

“O que fazer de sua vida aos 45 anos? Comprou uma Harley e algumas jaquetas de couro, pagou putas mais caras, chegou a tomar coragem pra assediar algumas mulheres mais novas sem pagar diretamente para possuí-las (um jantar, uma viagem, uns presentinhos, apenas isso, nada em “cash”!), mas sempre que tentava se aproximar de alguma mulher mais interessante ou inteligente era tratado como o garotinho ridículo que julgava ter deixado de ser há tanto tempo. Isso dava uma angústia tremenda, mas nada que mais comprimidos, putas caras e álcool não dessem um jeito.”

“Com a idade, somou um pequeno comprimido azul aos que ingeria diariamente e, com isso, orgulhava-se de ao menos uma vez por semana comer uma garotinha com menos de 25 anos de idade. Um ano após se aposentar, teve um derrame. Nunca mais foi o mesmo. Mas o que o matou realmente foi aquela queda ao tropeçar na calçada em frente de casa, na manhã de segunda-feira.”

“Espero que perdoem o tom literário que usei, achei que tornaria tudo mais leve e fácil. Enfim, termino aqui essa breve biografia de um homem que podemos dizer que foi bem-sucedido. Ganhou todo o dinheiro que precisou para pagar pelo prazer de esquecer que nunca deixou de ser o garotinho assustado e covarde daquela fatídica tarde quando pagou por sua primeira mulher.” – Ao proferir essas últimas palavras, o homem magro, barbado e com olhos cheios de ódio e lágrimas, encarou o pequeno público: sua mãe, com o rosto repuxado pelo botox e um leve sorriso nos lábios; três casais de tios com expressões que variavam do susto ao desprezo; dois velhos colegas de chope de seu pai, que pareciam raivosos e surpresos; e um pequeno cachorro que se coçava indiferente ao enterro e ao discurso que um filho fazia em homenagem ao seu recém-falecido pai, antes que jogassem as primeiras pás de terra sobre o caro e luxuoso caixão.