quinta-feira, maio 26, 2016

Não havia um só monstro naquele quarto





São homens que humilham, estupram, matam e se divertem durante o processo, filmando e depois divulgando as imagens das suas vítimas mulheres na internet.

Era de homens que Dostoievski falava, pela boca de Ivan Karamazov, quando contou que na Bulgária “queimam, degolam, violentam mulheres e crianças, pregam as orelhas dos prisioneiros a uma cerca com pregos, os deixam assim até o dia amanhecer e de manhã os enforcam”. 

São humanos, sem chifres ou dentes afiados, que diariamente, em alguns países, arrancam a pele de cachorros vivos, os queimam e torturam lentamente para, por fim, os jogarem ainda conscientes em caldeirões de água fervente – e tudo isso, por acreditarem que quanto mais sofrerem antes da morte, mais saborosa será a sua carne.  

E, sejamos justos, são pessoas comuns que em nosso país consideram uma atitude de mau gosto alguém postar vídeos que mostrem vacas e porcos apavorados caminhando em fila indiana para serem assassinados; jacarés e raposas tendo suas peles arrancadas; lagostas sendo cozidas vivas; bezerros imobilizados por toda sua curta existência para que sua carne seja mantida tenra; mas julgam completamente normal o churrasco do final de semana ou a bolsa, a carteira, o sapato e o casaco fabricados a partir de pedaços de corpos de seres inocentes mutilados.

Não há monstros. Ou melhor, se existem, os monstros não são ELES, somos nós. Quanto mais apontamos para a barbárie e dizemos que são perpetradas sempre pelos outros, mais fugimos das condições de possibilidades de enxergarmos as causas de tanta dor. Ao entendermos que temos em nós mesmos a semente da monstruosidade, damos o primeiro passo para combatê-la. 

Se TRINTA homens estupram uma garota, a filmam desacordada, seminua, sangrando e riem para a câmara fazendo piadas antes de divulgarem tal vídeo, isso mostra que não se tratam de exceções sociais, mas do resultado de uma forma de enxergar as mulheres e a si mesmos. O sádico, o cruel, o covarde só sente que é possível agir assim diante de uma câmera porque de alguma maneira percebe o seu ato como justificável. Por isso o feminismo é extremamente necessário, para nos obrigar a encarar o quão doente está a nossa sociedade devido ao machismo. O feminismo já salvou muitas vidas e ainda tem muito trabalho pela frente. 

Precisamos muito (todos nós) do movimento negro, do LGBT, dos que questionam a forma como se dá a globalização. Precisamos dos que combatem a ideia de que o Capital está acima da vida, dos que arriscam sua sanidade para mostrar a que são submetidos os animais trucidados pelos nossos caprichos. Nós necessitamos dos direitos humanos para nos salvar de nós mesmos.

As maiores crueldades já foram consideradas normais. Muitas continuam sendo. Escravidão, massacres, pedofilia legitimada pela instituição do casamento, mulheres queimadas em fogueiras por religiosos, meninos cantores castrados para manterem sua voz aguda, seres assassinados em massa para satisfazerem nosso paladar, a lista é interminável. 

A monstruosidade humana é alimentada diariamente por discursos que tentam torná-la invisível normatizando-a, direcionando-a contra as chamadas minorias, dando a ela ares de normalidade. Ao acharmos que os monstros são apenas os outros, estamos nos negando a encarar o fato de que forças sociais podem simplesmente transformar cada um de nós em executor.

Para encerrar, um trecho de um relatório escrito por um burocrata, registrado por Foucault, relatando, com a frieza técnica que se espera de sua classe, como o Estado punia um infrator. Tudo isso em frente aos olhares de uma multidão de homens, mulheres e crianças que em grande parte se divertia com o que via: “um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou umas tenazes de aço (...) atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava com suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer (...)”. A vítima, “que gritava muito sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a fartamente sobre cada ferida”.