sexta-feira, junho 15, 2007

Santos e radicais, prantos e latidos

“Humanamente, só nos santos dá pra ver os deuses: só nos radicais, dá pra ver a ideia”
Quase duas da manhã, leio tal frase. É o tipo de coisa que, se não somos muito distraídos ou idiotas para a deixar passar despercebida, relemos e depois fazemos uma pausa para pensar. Foi isso que fiz, com o livro entreaberto, página marcada por um dedo.
O silêncio é relativo, mesmo a essa hora, apenas o possível nas madrugadas das grandes cidades – carros ao fundo, leve mantra mecânico produzido por pistões e explosões. Noite amena; nem calor, nem frio, nem sono. Livro na mão esquerda, página 23 marcada pelo dedo indicador, a frase de Leminski na cabeça. Então, o imponderável se apresenta: o choro feminino. Dor anônima que rasga a noite, interrompe o pensamento e desperta os cachorros, que, solidários, latem e uivam – 1,2,5,8 – incontáveis vozes de cães diferentes. Choro sentido e profundo, cria o silêncio entre um espasmo e outro.
Vou à janela, poucas luzes acesas, poucos carros passando. O que fez essa mulher romper a distância entre ela, os cachorros e os ouvidos vizinhos? O que a fez sair de sua anônima existência? Regia, em sua agonia, o canto canino que anunciava a todos que algo se rompeu. A ordem das coisas se alterou. E seja ela quem for, com seu grito irracional, naquele momento, dominou a noite. Contra aquilo, nem livros, nem idéias, nem santos, nem radicais, poderiam se bater. Ela, sua dor e a aflição dos cães eram, ao menos por aqueles segundos, a própria noite.