terça-feira, agosto 26, 2008

O Século de Sartre (parte II): Má-fé e revolução


O autor usa boa parte das páginas de seu livro para construir a imagem de analista qualificado e simpatizante do biografado (o livro é uma biografia filosófica, ou literária, já que se atém mais às obras e posturas políticas do biografado do que à sua vida pessoal), para depois atacar seu verdadeiro alvo, seu verdadeiro inimigo: o pensamento revolucionário – vejam bem, afirmo que Lévy não ataca apenas os abusos, assassinatos e ditaduras perpetrados em nome da revolução, ataca sim a própria idéia de pensamento revolucionário, de devir revolucionário.

Aos poucos, o caráter reacionário do autor ganha corpo e percebemos o quanto o assusta e enoja o pensamento para o outro, a ação pelo outro. Qualquer práxis e teoria que fujam do individualismo quase niilista por ele atribuído ao primeiro Sartre é território inimigo. Suas investidas não se dão apenas contra o segundo Sartre, de Crítica da Razão Dialética, o autor marxista e engajado, mas contra o pensar revolucionário em si e contra os pensadores da revolução. No ataque a Deleuze, por exemplo, fica claro que Bernard-Henri Lévy entrou em uma guerra na qual está disposto a usar qualquer arma que julgue eficaz, até mesmo a distorção deliberada: “Pode-se gostar de uma filosofia capaz de nos dizer que os avatares de um carrapato à espreita podem ter mais sentido e importância do que o sofrimento de um kosovar ou de um checheno?” (Lévy, op. cit., p. 228).

Será que o autor é tão burro assim, pra interpretar o pensamento deleuziano dessa forma brutalmente rasa e distorcida ou é um ato de má-fé? Pela qualidade de outras passagens e análises de seu livro, duvido de sua burrice. Como pôde dizer tais palavras a respeito de um filósofo que sempre defendeu a liberdade, a multiplicidade, o respeito à alteridade, um homem que combateu todos os tipos de fascismos, que amava a vida e acreditava no ato de tocar o real, incentivando a práxis libertária que cria jurisprudências ao agir sobre a realidade contra as injustiças. Como pôde fazer um julgamento tão leviano a respeito de alguém que lutava tanto pela liberdade humana, que sabia que o primeiro passo para conquistá-la está na decisão de travarmos uma guerra de guerrilhas dentro de nós mesmos, pois como possuímos subjetividades polifônicas, plurais, estamos o tempo todo sendo invadidos por forças externas: “O inconsciente é uma substância a ser fabricada, a fazer circular, um espaço social e político a ser conquistado” (Deleuze e Parnet, 1998: 94). Deleuze acreditava nas pequenas ações, acreditava na capacidade do homem de lutar pelo mundo:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.” (1992: 218)

O combate de Deleuze pela liberdade é tão vital, tão radical, que defende o desapego a qualquer forma de poder. Ele era um revolucionário, um verdadeiro revolucionário que sabia que “o sucesso de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações, nos enlaces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia” (Deleuze e Guattari, 1992: 229). Deleuze era contra qualquer Estado totalitário, contra qualquer possibilidade de despotismo e sabia que o pensamento revolucionário é renovado a cada dia, ao se questionar o presente, e nasce do descontentamento, do inconformismo com qualquer tipo de injustiça, da criatividade e depende da liberdade de ação e pensamento. Vemos, portanto, que o pensamento de Deleuze nada tem a ver com a caricatura que o autor d’O Século de Sartre fez. Assim sendo, a seguir, tentaremos descobrir qual é o pensamento de Bernard-Henri Lévy.

(continua...)



DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

sábado, agosto 23, 2008

O Século de Sartre – parte I

Com algum atraso, tive acesso a esse livro. Desde que a edição brasileira foi lançada, em 2001, eu estava com vontade de ler, mas nunca o suficiente pra gastar mais de 60 reais em um livro do Bernard-Henri Lévy. Mas, então, mês passado, eu achei um exemplar com aspecto de novo, sem uso mesmo, por 20 reais em um sebo no centro de São Paulo.

O livro é melhor do eu pensava, primeiro, porque Lévy escreve bem, o texto é fluido e agradável e as mais de 550 páginas passam muito fácil e rapidamente, segundo porque, como já sabia, a vida de Sartre é mesmo muito interessante e admirável, concorde-se ou não com suas posturas e palavras. Porém, é também um livro perigoso justamente porque Lévy é um bom escritor e sabe seduzir o leitor desinformado e levá-lo a aceitar com naturalidade suas posições e opiniões apresentadas como verdades simples. Por isso, considero que é uma boa obra somente pra quem já possui razoável leitura prévia sobre os assuntos tratados, principalmente a respeito de filosofia política.

Toda a primeira metade do livro se desenrola muito bem e até me surpreendi com um Bernard-Henri Lévy que se mostra grande admirador do que ele chama de “primeiro Sartre”, o autor de A náusea e d’O Ser e o Nada, um Sartre baseado, segundo o Lévy, em Stendhal e Espinosa, com um leve tempero de Nietzsche. O autor defende Sartre mesmo nas questões mais polêmicas de sua vida pessoal, como no caso de seu rompimento com Camus após o lançamento d’O Homem Revoltado. Não que ele ache que Sartre estivesse certo ao defender a esquerda enquanto Camus apresentava a constatação de que não se pode querer “libertar todos os homens escravizando todos, provisoriamente” (Camus, 1999, p.283), a questão é que Bernard-Henri Lévy age de maneira que eu não esperava e contextualiza historicamente a posição de Sartre, levando os leitores a compreendê-la; porém, só mais pra frente é que fui entender as reais motivações e estratégias do autor da biografia.


(Continua...)



CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LÉVY, Bernard-Henri. O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.