domingo, novembro 09, 2014

Aprendendo com meu irmão mais novo (ou como reagir a um assalto)






Há menos de dois meses, estava voltando pra casa de ônibus após dar aulas no Centro da cidade. Ônibus parado no sinal, eu respondendo a mensagens no celular e um grupo de adolescentes moradores de rua atravessando a Av. Chile. Um deles saltou no pneu e enfiou o braço pela minha janela. Como eu previ sua atitude, por um segundo ele ficou com aquele braço na minha frente completamente vulnerável. Bastava um movimento simples pra eu quebrá-lo. Mas foi necessário menos de um segundo, felizmente, para que eu decidisse não fazer isso. Apenas afastei o celular com uma mão enquanto bloqueei seu braço com a outra. 

Olhei nos olhos daquele garoto de 12 ou 13 anos e só vi ódio antes dele fugir. Olhei nos seus olhos e só senti compaixão. Depois, contando o que aconteceu para amigos e conhecidos quase todos se mostraram indignados por eu não ter quebrado o braço dele. Alguns sugeriram que eu teria a obrigação de usar o meu jiu jitsu para acabar com a vida do garoto, salvado assim futuras vítimas e outros foram mais longe e disseram que a vontade era assassinar a todos esses “menores”. Eu só conseguia pensar em quanto ódio vi naquele olhar e em como antes dele tentar roubar meu celular o nosso mundo roubou dele toda e qualquer possibilidade de felicidade. Com 12 anos de idade meus dramas se resumiam a enfrentar as malditas provas de matemática na escola, já ele está todos os dias enfrentando a vida e sabendo que dela só receberá ódio e medo. O ódio é que não o deixa sucumbir ao medo de ser um eterno estrangeiro em sua cidade. Causar o medo no outro é sua arma para sobreviver.

Na madrugada da última sexta-feira algo muito mais grave aconteceu. Meu irmão foi cercado por 20 caras, a maioria adolescentes, alguns adultos. Argumentou que não tinha dinheiro, mas foi derrubado, chutado, levou pauladas e uma pedrada. Conseguiu se desvencilhar e chegar à Presidente Vargas quando então os agressores fugiram com medo das potenciais testemunhas. Meu irmão está bem, hematomas e arranhões pelo corpo, mas está bem. Se não tivesse conseguido chegar a um local aberto, podia ter até mesmo morrido. 

Quando eu soube disso, fiquei obviamente indignado com a covardia, senti muito ódio principalmente por não ser comigo, mas com meu irmão. É muito mais fácil perdoar algo que fazem contra nós do que algo que é feito contra nosso irmão. Expressei minha raiva e ele respondeu “coitados desses moleques, com toda essa energia e se expondo assim. É certo que vão se foder em muito pouco tempo”. 

Ele foi mais longe do que eu e perdoou não apenas quem tentou o agredir ou roubar, perdoou quem covardemente o machucou, quem o chutou mesmo caído, quem poderia tê-lo matado se ele não tivesse conseguido se defender.

Não sou ingênuo, se eu voltar a cruzar com o menino que tentou me roubar e ele tiver a oportunidade, vai me tirar o celular, a carteira e, talvez, a vida. Meu irmão não é ingênuo, ele sabe que pode não sair vivo se se encontrar novamente em uma situação como a que passou. Ambos usamos o jiu jitsu, eu para ter a frieza de evitar um roubo sem me machucar ou machucar o próximo, ele para salvar a própria vida. Ambos usamos a nossa arte para que todos se machucassem o menos possível.
Não somos bonzinhos idiotas, sabemos que nossos agressores não nos poupariam, sabemos que são covardes e brutais. Mas sabemos antes disso que foram transformados nisso tudo por um mundo que cria desigualdade e ódio. Sabemos que os problemas são muito maiores e anteriores às situações que vivemos e que no lugar do ódio contra quem nos agrediu temos que ser agressivos contras as bases sociais que criam tais agressores. 

Claro que se for necessário para me defender, eu quebrarei um ou mais braços, mas espero ter a frieza necessária para agir certo sempre que depender de mim a interrupção do ciclo de violência.
Sim, eleitores do Bolsonaro e leitores do Constantino, existem esquerdistas humanos, sinceros e coerentes. Não adianta falarem os bordões de sempre “queria ver se a vítima fosse você, aposto que ia querer que o policial matasse a pessoa que te assaltou”. Existem pessoas que realmente têm um pensamento altruísta e conseguem se colocar no lugar do outro, mesmo quando esse outro foi colocado pela vida na posição de alguém que te faz o mal. E eu sou o irmão orgulhoso de uma dessas pessoas.

terça-feira, outubro 14, 2014

A locomotiva do país

foto: Thomás RPO


A locomotiva do país passa por cima,
Dos pobres,
Dos negros,
Dos gays,
Da inteligência
De todos nós.

Em São Paulo, Feliciano sorri.
E em meio a uma massa de almas cansadas e gananciosas,
Dois homens são espancados porque se amam,
Porque se desejam, se abraçam, se beijam.
Porque existem.

A cidade não pode parar,
E se movimenta orgulhosa a 10km/h
Em um trânsito metodicamente enlouquecedor
Enquanto espalha tachinhas em ciclovias.

Em camarotes
Os vips ouvem Seo Jorge
Vaiam avanços sociais
Celebram a desigualdade
Porque podem pagar por ela
E quando a festa acaba e voltam pra casa
Trancam portas, ligam alarmes e sonham com facadas no baço.

Serra brindou com Alckmin
(Água mineral francesa refrescando a seca paulista)
Suplicy melancolicamente cantou pela última vez Blowin’ in the Wind
E orgulhosos os eleitores de Tiririca bradaram
Que nordestinos não sabem votar.

Criolo cantou que não existe amor em SP
E eu quase concordei.
Mas ele existe
Nos guetos
Nas favelas misteriosamente incendiadas
Debaixo das sombras das últimas árvores
E ele é plural e se chama "minorias".

quarta-feira, maio 28, 2014

Entre estupros e apedrejamentos - Brasil, Paquistão e o lugar da mulher





Foto: Reuters. Publicada em: http://www.theguardian.com/world/2014/may/27/pregnant-pakistani-woman-stoned-to-death?CMP=fb_gu




Pregnant Pakistani woman stoned to death by family

Esse é o título de uma matéria do “The Guardian” que descreve como a família de uma mulher, comandada pelo seu próprio pai, a apedrejou até a morte por ela ter se casado por amor. O chamado “assassinato de honra” pune mulheres condenadas por adultério ou que tenham tido “conduta sexual inadequada”. É uma brutal afirmação do poder da família (especialmente dos homens) sobre o corpo e a alma das mulheres.

Ao ler a matéria, muitos brasileiros podem se sentir aliviados por não viverem em uma sociedade com costumes sórdidos como esse e podem se congratular pela confortável posição das mulheres em nosso país. Mas isso é verdade? Somos tão diferentes assim?

Infelizmente temo que as respostas para ambas as perguntas sejam negativas. Não somos tão diferentes assim, pois as raízes do machismo assassino estão fincadas nas bases da nossa cultura e não enxergar isso só torna o problema ainda mais grave.  

“Cidadãos de bem” indignados podem argumentar que não apedrejamos mulheres que se casam por amor...

Para responder a isso, vamos fazer um exercício de reflexão nada exigente. Algo bem simples. Vamos pensar um pouco sobre alguns acontecimentos recentes e ver o que eles nos contam sobre nós mesmos:

Todos devem lembrar de que uma pesquisa recentemente revelou que um quarto da população brasileira acha que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser estupradas”. E em comentários de leitores na internet, em reportagens sobre estupro, vemos as frases mais absurdas sendo ditas com uma naturalidade assustadora. Coisas como “O que essa garota estava fazendo na rua sozinha de madrugada? Se estivesse em casa com a família nunca teria sido estuprada.” ou “Foi estuprada voltando de um baile funk, grande surpresa. Imagino como estava vestida.
Aliás, a internet tem esse estranho poder de liberar o fascista interior das pessoas. Faça uma experiência, leia os comentários dos leitores de qualquer matéria sobre a “Marcha das vadias”. Vão desde “Só tem baranga mostrando os peitos, um bando de mal comidas” até “São vadias mesmo, um monte de vagabundas que deviam estar em casa lavando roupas”.

Outra fonte reveladora de nossos demônios interiores são nossas novelas. Li que na atual principal novela global o grande dilema está sendo em torno de um casal gay. Em pesquisas promovidas pela emissora, o público demonstrou que até aprovaria o envolvimento das duas mulheres, mas não admitiria que elas vivessem juntas como um casal saudável, levando uma vida normal. Ou seja, o amor e a felicidade de uma vida a dois estaria reservada para as mulheres que se atraem por homens. E não vamos nos esquecer que em novela mais antiga, um casal de mulheres já foi demolido junto com um shopping.  Assassinato a mando do público... 

Somos tão diferentes dos paquistaneses, que alívio vivermos nos trópicos onde o carnaval iguala a todos e as mulheres são livres para viverem em paz. Elas só precisam cumprir algumas exigências:

Usar roupas adequadas;
Nem pensar em sair às ruas para protestar;
Se enquadrar nos padrões heteronormativos;
Ou ao menos não ousar ser feliz e homossexual ao mesmo tempo;
Cumprir jornada dupla trabalhando fora e “cuidando” da família.

...

O cidadão de bem, toma um gole de uísque, respira fundo para se acalmar e pensa: “É um país ótimo e para serem felizes elas só precisam aprender a respeitar algumas regras. É tudo tão simples, mas parece que algumas mulheres não conseguem entender. Mas vamos ter paciência com elas, afinal são só  mulheres...

quinta-feira, abril 24, 2014

Pondé e a arte de "pegar mulher"



 foto: Wikipédia


Pondé, ao contrário do que você afirmou, os direitistas “pegam mulheres” sim. Mesmo porque o que não falta por aí é mulher de direita defendendo seu direito ao consumo, à futilidade e dando seu aval para o assassinato de um ou outro “pobre perigoso” que cruze seu caminho. Você como “filósofo” sabe que o problema a ser proposto é parte essencial para a construção de qualquer argumento minimamente válido. E o problema que você aborda é falso. Ao homem de direita não há falta de mulheres interessadas neles e em seus (ou, melhor, na sua falta de) valores. O problema é a falta de mulheres interessantes se interessando por eles.

E como você poderia querer que seus leitores atraíssem mulheres (ou homens) interessantes se eles são a expressão do tedioso e previsível egocentrismo liberal? Os caras aprendem com os pais que tempo é dinheiro. Depois em suas escolas direcionadas para o vestibular e em suas faculdades tecnicistas lhes é ensinado que vida é dinheiro, aparência, contatos sociais, metas pessoais, sexo, tudo é, ou deriva do, dinheiro. Aprendem, como bons liberais, que é preciso competir e passam a vida buscando enriquecer, olhando para os próprios umbigos e morrendo de medo que alguém ameace suas pequenas conquistas. 

Como esses coitados autocentrados, covardes e gananciosos poderiam chamar a atenção de mulheres ou homens interessantes? E a resposta a essa pergunta é invariavelmente fadada ao fracasso: eles buscam parecer interessantes mostrando o que têm de melhor, ou seja, seus bens materiais e sua história de sucesso profissional. Resultado: continuam dividindo suas camas e vidas com mulheres tão vazias quanto eles.

Então, de repente, o salvador dos reacionários apresenta uma proposta revolucionária: finjam que são interessantes, finjam que são de esquerda. Nas palavras do “filósofo” dos coxinhas: “fale de liberdade, do sofrimento humano, de corpo, discuta documentários”... 

A dura verdade, seguidores do Pondé, é que por mais que os direitistas estejam acostumados a adotar a impostura como modo de vida, dessa vez não vai colar. Mulheres e homens interessantes irão logo perceber que tudo isso não passa de uma maquiagem para esconder a cara feia e ressentida direitista.
Pondé, como você quer que seus leitores pareçam interessantes se você mesmo, ídolo intelectual deles, é incapaz de disfarçar sua verdadeira face rancorosa e triste. Você pensa que mulher interessante se “pega”, que só é possível fazer sexo com elas se as embebedarmos antes, que adoram ouvir um papo a respeito de se libertarem da opressão sobre os próprios corpos.

Um homem de esquerda de verdade vai atrair, e se atrair por, mulheres interessantes porque o amor é a base de qualquer revolução verdadeira. No lugar do dinheiro, a compaixão é o valor central de sua vida. Ao invés da covardia reacionária que teme qualquer mudança por medo da perda de privilégios, ele cultiva a coragem de quem quer mudanças que tragam mais justiça. Quando ele fala em libertação das mulheres em relação à opressão histórica que elas sofrem, não está recorrendo a estratégias retóricas para “comer mulher”, mas simplesmente está sendo coerente ao cobrar da sociedade respeito em relação a pessoas que ele ama e admira. 

E no final da história, enquanto os direitistas colecionam pobres e desinteressantes mulheres interesseiras, o verdadeiro esquerdista se entregará a relacionamentos enriquecedores até que um dia, se der muita sorte, encontrará A mulher com quem construirá uma história em sistema de cooperação apaixonadamente comunista.

E então, para encerrar, recorro a alguém que realmente sabe de filosofia, o esquerdista Zizek:

 “Today, passionate engagement is considered almost pathological. I think there is something subversive in saying: This is the man or woman with whom I want to stake everything.”
“This is why I was never able to do so-called one-night stands. It has to at least have a perspective of eternity.”

Mas, Pondé, sem ressentimentos, tá na cara que você não entende do assunto (relacionamentos humanos).

sábado, março 15, 2014

Justiceiros, sheherazades e bolsonaros

Em tempos de aplausos a justiceiros, sheherazades e bolsonaros, tá cada vez mais difícil ter ânimo para discutir. A cada nova discussão, as mesmas respostas rasas e repetições de clichês fascistoides. E tudo isso camuflado de discurso democrático em defesa da família, da moralidade e do diabo a quatro.

Mas a verdade é que no fundo, e não tão fundo assim, mas sim logo abaixo de uma fina camada de verniz civilizatório, a direita só se esconde atrás do discurso democrático, do "ser o outro lado da moeda". O Bolsonaro não é diferente da "direita moderada", o Bolsonaro é só a direita acordando de ressaca, sem maquiagem.

Já a direita produzida para as câmeras, cheia de lantejoulas, firulas e sorrisos, só quer usar o jogo democrático para aos poucos suprimir a democracia. Foi assim com Reagan, Thatcher, Bush e cópias latino-americanas deles.

A direita quer, e se não quisesse não seria direita, a manutenção dos privilégios de poucos. Por isso luta contra mudanças, contra o novo, contra o povo. Se ela luta por privilégios, mesmo quando o faz por meios legais em nossa democracia representativa mambembe, ela luta contra a justiça democrática.

Ou seja, ela mete uma maquiagem pesada, coloca os melhores saltos, contrata media training para aprender a sorrir, toma cafezinho no boteco com eleitores (sem esquecer de antes esconder o relógio milionário no bolso para não ser roubada) e beija criancinhas sem conseguir disfarçar o nojo. E faz tudo isso para vencer eleições democráticas, para, uma vez no poder, sabotar qualquer chance de verdadeira democracia.

Se Bolsonaro é a direita de ressaca, acordando toda vomitada em um beco sujo, a revista Veja é a direita em final de festa, com a maquiagem toda borrada, os cílios postiços grudados na bochecha suada, o vestido rasgado, o hálito podre vindo em nossa direção com uma tentativa tragicômica de ainda ser sedutora...