terça-feira, maio 23, 2006

O monge


-Senhor, a próxima cela oferece um belo exemplo de como a solidão e a contemplação podem levar um homem a Deus! – falou o magro monge de olhos vivos enquanto apressava os passos.

De uma pequena abertura, coberta por uma espécie de véu metálico, via-se o vulto de um homem sentado de costas para a porta e de frente para a parede oposta.

- Este é o irmão Schultz. Há quase uma década chegou ao mosteiro enviado pelos pais. Era um jovem de corpo forte, mas com a mente contaminada por valores mundanos. Um hedonista. Após muitas conversas reservadas com o abade, finalmente percebeu que os demônios o rodearam e manipularam por toda a vida. Passou cinco anos em isolamento completo e enfrentou os espíritos malignos com todo o poder da alma...

- Espere um pouco. Agora que meus olhos se acostumaram à falta de luz, percebo que este homem tem o corpo todo marcado por cicatrizes. O que lhe aconteceu? Porque suas mãos estão neste estado? Porque lhe falta um pedaço da orelha?

Como já esperava pela pergunta, o magro monge de olhos vivos não conseguiu esconder um leve sorriso enquanto a respondia ao rico comerciante que tantas benfeitorias já havia patrocinado àquele mosteiro:

- Foi muito difícil para ele saber onde acabava o mundo físico e começava o espiritual. Ele próprio se feriu desta maneira. Socava as paredes quando nela enxergava um demônio, tentava arrancá-los à unha quando não saiam por orações. Mas no final venceu a batalha. Hoje há monges daqui que chegam a dizer que ele um dia será reconhecido como um santo...

- Por favor, abra a porta. Gostaria de conversar com ele a sós...

- Desculpe-me senhor, isso seria impossível – a voz do magro monge saiu fraca e tremida.

- Quero saber o porquê desta impossibilidade?

- Ele não mais pode falar. Arrancou a própria língua para que nunca mais viesse a proferir uma blasfêmia...

O maior benfeitor do mosteiro interrompeu abruptamente sua visita e retirou-se sem mais nada dizer. Quando a carruagem chegou a sua casa, mandou chamar um de seus empregados e ordenou:

- Nesta noite, suba a colina com dois ajudantes. Quando chegar ao portão do mosteiro, arrebente as trancas e entre. Espalhe querosene por toda parte e ponha fogo. Mas antes disso, procure o abade e arranque-lhe a cabeça. Mande os seus dois assistentes ficarem do lado de fora e instrua-os para que atirem em qualquer monge que tente fugir de seu encontro com Deus.

E assim foi rompida uma próspera relação entre igreja e comércio, ao menos naquela pequena cidade.

Um comentário:

Pedro Sangirardi disse...

Bom trabalho cara, belo texto. Você ganhou um leitor assíduo a partir de agora. Mantenha o blog atualizado! Abraço.