Há menos de dois meses, estava voltando pra casa de ônibus após
dar aulas no Centro da cidade. Ônibus parado no sinal, eu respondendo a
mensagens no celular e um grupo de adolescentes moradores de rua atravessando a
Av. Chile. Um deles saltou no pneu e enfiou o braço pela minha janela. Como eu
previ sua atitude, por um segundo ele ficou com aquele braço na minha frente
completamente vulnerável. Bastava um movimento simples pra eu quebrá-lo. Mas
foi necessário menos de um segundo, felizmente, para que eu decidisse não fazer
isso. Apenas afastei o celular com uma mão enquanto bloqueei seu braço com a
outra.
Olhei nos olhos daquele garoto de 12 ou 13 anos e só vi ódio
antes dele fugir. Olhei nos seus olhos e só senti compaixão. Depois, contando o
que aconteceu para amigos e conhecidos quase todos se mostraram indignados por
eu não ter quebrado o braço dele. Alguns sugeriram que eu teria a obrigação de
usar o meu jiu jitsu para acabar com a vida do garoto, salvado assim futuras
vítimas e outros foram mais longe e disseram que a vontade era assassinar a
todos esses “menores”. Eu só conseguia pensar em quanto ódio vi naquele olhar e
em como antes dele tentar roubar meu celular o nosso mundo roubou dele toda e
qualquer possibilidade de felicidade. Com 12 anos de idade meus dramas se
resumiam a enfrentar as malditas provas de matemática na escola, já ele está
todos os dias enfrentando a vida e sabendo que dela só receberá ódio e medo. O
ódio é que não o deixa sucumbir ao medo de ser um eterno estrangeiro em sua
cidade. Causar o medo no outro é sua arma para sobreviver.
Na madrugada da última sexta-feira algo muito mais grave
aconteceu. Meu irmão foi cercado por 20 caras, a maioria adolescentes, alguns adultos.
Argumentou que não tinha dinheiro, mas foi derrubado, chutado, levou pauladas e
uma pedrada. Conseguiu se desvencilhar e chegar à Presidente Vargas quando
então os agressores fugiram com medo das potenciais testemunhas. Meu irmão está
bem, hematomas e arranhões pelo corpo, mas está bem. Se não tivesse conseguido
chegar a um local aberto, podia ter até mesmo morrido.
Quando eu soube disso, fiquei obviamente indignado com a
covardia, senti muito ódio principalmente por não ser comigo, mas com meu
irmão. É muito mais fácil perdoar algo que fazem contra nós do que algo que é
feito contra nosso irmão. Expressei minha raiva e ele respondeu “coitados
desses moleques, com toda essa energia e se expondo assim. É certo que vão se
foder em muito pouco tempo”.
Ele foi mais longe do que eu e perdoou não apenas quem
tentou o agredir ou roubar, perdoou quem covardemente o machucou, quem o chutou
mesmo caído, quem poderia tê-lo matado se ele não tivesse conseguido se
defender.
Não sou ingênuo, se eu voltar a cruzar com o menino que
tentou me roubar e ele tiver a oportunidade, vai me tirar o celular, a carteira
e, talvez, a vida. Meu irmão não é ingênuo, ele sabe que pode não sair vivo se
se encontrar novamente em uma situação como a que passou. Ambos usamos o jiu
jitsu, eu para ter a frieza de evitar um roubo sem me machucar ou machucar o
próximo, ele para salvar a própria vida. Ambos usamos a nossa arte para que
todos se machucassem o menos possível.
Não somos bonzinhos idiotas, sabemos que nossos agressores
não nos poupariam, sabemos que são covardes e brutais. Mas sabemos antes disso
que foram transformados nisso tudo por um mundo que cria desigualdade e ódio.
Sabemos que os problemas são muito maiores e anteriores às situações que
vivemos e que no lugar do ódio contra quem nos agrediu temos que ser agressivos
contras as bases sociais que criam tais agressores.
Claro que se for necessário para me defender, eu quebrarei
um ou mais braços, mas espero ter a frieza necessária para agir certo sempre
que depender de mim a interrupção do ciclo de violência.
Sim, eleitores do Bolsonaro e leitores do Constantino,
existem esquerdistas humanos, sinceros e coerentes. Não adianta falarem os
bordões de sempre “queria ver se a vítima fosse você, aposto que ia querer que
o policial matasse a pessoa que te assaltou”. Existem pessoas que realmente têm
um pensamento altruísta e conseguem se colocar no lugar do outro, mesmo quando
esse outro foi colocado pela vida na posição de alguém que te faz o mal. E eu
sou o irmão orgulhoso de uma dessas pessoas.
2 comentários:
cara, malgrado o que você bem sabe, concordo com tudo o que você escreveu. lembrei de uma entrevista do Mário Bortolloto ao Rogerio Skylab que vi recente: perguntado sobre o que sentia com relação ao crackudo ou nóia que lhe deu um tiro dentro de um bar em São Paulo, ele respondeu "Pô, não tive raiva do cara não, foi uma reação instintiva, ele me deu uma porrada, eu reagí; o cara tava fazendo o trabalho dele." isso de pagar ódio com ódio, embora bastante na moda, não vai resolver problema algum, pelo contrário, só faz estratificar - e acuar - ainda mais as camadas sociais, penso eu. mas, somos humanos. nossas ideias, em certas situações, são atropeladas pelo instinto de autopreservação e proteção aos nossos. não é nada fácil direcionar o ódio contra o stablishment quando se leva uma porrada ou um tiro à covardia ou à vista de um parente ou amigo morto. mas acho que devemos praticar. em prol da sociedade, em prol das pessoas que amamos, em prol de nós mesmos. mais uma vez, ótimo texto, irmão. abração!
Carlos Cruz, muito bom o seu comentário! Um orgulho conhecer pessoas como vc. É realmente um dos maiores desafios da vida interromper o ciclo de violência quando fomos feridos e ofendidos e estamos em posição de revidar. Li uma outra entrevista do Bortolloto na qual ele falava isso e passei a admirar ainda mais o cara.
Abraço, irmão!
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