segunda-feira, setembro 07, 2009

O patriota

Com seus cabelos castanhos encaracolados e olhar orgulhoso, a pequena garota entra na sala.
- Papai, papai. Largue o jornal e olhe como to linda!
- Você é mesmo uma princesa, Laurinha. A menina mais linda que já vi. – responde, com felicidade, Alberto, após colocar o jornal que lia sobre o colo.
- Olha o meu vestido novo. Verdinho, verdinho. Mamãe disse que pareço um passarinho com esse vestido tão verdinho... - rodopiando exibidamente, olhando para o próprio vestido e sorrindo muito.
- Parece sim, parece que vai voar de tão bonita que está. – adora a filha. Sempre sente uma profunda satisfação quando a vê feliz.
- Está pronto, amor? Não podemos nos atrasar pro almoço. – fala a esposa, que acaba de sair do quarto, ainda penteando os cabelos.
- Claro. Estou pronto há tempos.
Ele se levanta da poltrona e caminha até Isabel, segura delicadamente sua cintura entre as mãos e dá um beijo em sua testa. Em seguida, chega com os lábios bem perto da orelha esquerda da esposa, quase a tocando, e sussurra:
- Te amo, Bel.
Ela sente um leve e gostoso arrepio. Sorri timidamente (ele adora que, mesmo após dez anos de casamento, ela ainda tenha esse sorriso tímido) e responde:
- Eu também. Você é o melhor marido do mundo...
O telefone toca, interrompendo os dois. Laurinha, saltitante, corre para atender enquanto anuncia:
- Eu atendo, eu atendo!
A esposa se afasta suspirando. Alberto aguarda, tenso.
- Papai, é pra você. É do trabalho.
Ele caminha pesadamente até o aparelho e pega lentamente o fone das mãos da filha.
- Alô, major Pontes falando. – Isabel pega a filha pela mão. As duas vão para o quarto e a mãe fecha a porta atrás de si. Do outro lado da linha, uma voz fanhosa:
- Major, o senhor precisa vir o mais rápido possível. Aquele assunto foi resolvido, precisamos do senhor aqui.
- Estou indo. – um enorme sorriso aparece em seus lábios no momento em que ele coloca o fone no gancho.
- Amor... Bel! Não poderei ir ao almoço, peça desculpas aos seus pais. Trabalho de última hora, preciso ir...
- Mas precisa mesmo ir? – a mulher pergunta, com voz de choro.
- Bel, você sabe que sim. Sabe que é meu dever! – dá um beijo na testa da esposa, pega as chaves do carro e sai.
Dirigindo, não podia deixar de se sentir eufórico. Finalmente pegaram o Ataíde, quem sabe tenham até prendido mais gente do grupo! Será que caiu o aparelho inteiro? Será que pegaram também a esposa do Ataíde? Devia ter perguntado! Com a esposa junto, tudo seria mais fácil. O cara deve ser duro, mas Alberto (ou melhor, major Pontes) queria ver quanto tempo Ataíde agüentaria ver a própria esposa sendo torturada e estuprada na sua frente sem dar mais nomes, sem entregar outras células. Mas e se a esposa conseguiu fugir? Aí será foda. Alguns desses caras são realmente resistentes. Aquele loiro cabeludo estudante de história, por exemplo, não delatou ninguém mesmo depois de ter uma das bolas esmagadas. Deviam ter dado antibióticos pra ele, mas o largaram lá na cela e acabou morrendo. Burros, não sabem fazer as coisas como devem ser feitas. Por isso o chamam, ele nunca mata nenhum desses comunistas se não for preciso. Conseguiu manter até mesmo aquela negra com o feto morto dentro da barriga pelo máximo de tempo possível sem a matar. O segredo é ser íntimo dos médicos, trabalhar junto deles. Mas tem gente que não entende isso, acha que basta sair batendo, dando choques, quebrando ossos e tudo se resolve. Por isso é que chamam ele, porque ele é bom no que faz. Dor e desespero, tem que se saber as medidas certas. Major Pontes tem muito orgulho do seu trabalho, de sua família e de ser brasileiro! Será um belo sábado!














Neste sete de setembro, que se fodam os desfiles militares e todas as bandeiras hasteadas sem reflexão. Homenageemos os revolucionários, os "subversivos", ou seja, os homens comuns que largaram o conforto para lutar contra os que fazem desse país uma máquina de moer gente.
Não há mais a ditadura militar. Mas isso não significa que ela seja algo do passado. Convivemos ainda hoje com muitos de seus efeitos que sobrevivem nas mais diversas áreas. E não podemos, como muitos querem, deixar que nossa indignação seja subjugada pelo esquecimento.
Dentro da humanidade se oculta a mais terrível monstruosidade. Saber disso, que o torturador e o pai de família são o mesmo homem, dá o que pensar. Traz a medida certa da importância de nos posicionarmos politicamente para evitar que as condições sociopolíticas que transformam homens em monstros sejam criadas e/ou mantidas.
Por isso tudo é que essas feridas não devem cicatrizar...

quinta-feira, setembro 03, 2009

Era das utopias

Boa alternativa no horário do Jornal Nacional: Era das Utopias, uma série, do cineasta Silvio Tendler, que estreou na Tv Brasil dia 31 de agosto, às 20h30.






domingo, junho 28, 2009

O militante (por Negri e Hardt)





“Na era pós-moderna, enquanto a figura do povo se dissolve, o militante é o que melhor expressa a vida da multidão: o agente de produção biopolítica e de resistência ao Império. Quando falamos de militante, não estamos pensando em nada parecido com o triste, ascético agente da Terceira Internacional, cuja alma estava profundamente permeada de razões de estado soviéticas, da mesma maneira que a vontade do papa estava cravada nos corações dos cavaleiros da Companhia de Jesus.”
(...)
“Hoje, depois de tantas vitórias capitalistas, depois que as esperanças socialistas murcharam em desilusão, e depois que a violência capitalista contra o trabalho foi solidificada sob o nome de ultraliberalismo, por que essas instâncias de militância ainda surgem, por que as resistências se aprofundam, e por que a luta reemerge continuamente com novo vigor? Deveríamos dizer, de imediato, que essa nova militância não repete simplesmente as fórmulas organizacionais da velha classe operária revolucionária. Agora o militante não pode sequer fingir ser um representante, mesmo das necessidades humanas fundamentais dos explorados. A militância política revolucionária hoje, ao contrário, precisa redescobrir o que sempre foi sua forma própria: atividade não representativa, mas constituinte. A militância atual é uma atividade positiva, construtiva, inovadora. Esta é forma pela qual nós e todos aqueles que se revoltam contra o domínio do capital nos reconhecemos como militantes. Militantes resistem criativamente ao comando imperial.” (...) “Essa militância faz da resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor.”
“Há uma lenda antiga que pode servir para iluminar a vida futura da militância comunista: a de São Francisco de Assis. Examine-se a sua obra. Para denunciar a pobreza da multidão ele adotou essa condição comum e ali descobriu o poder ontológico de uma nova sociedade. O militante comunista faz o mesmo, identificando na condição comum da multidão sua enorme riqueza. Francisco, em oposição ao capitalismo nascente, recusou todos os instrumentos de disciplina, e em oposição à mortificação da carne (na pobreza e na ordem constituída) propôs uma vida de alegrias, incluindo todos os seres e a natureza, os animais, a irmã lua, o irmão sol, as aves do campo, os humanos pobres e explorados, juntos contra a vontade de poder e corrupção. Mais uma vez na pós-modernidade, encontramo-nos na situação de Francisco, propondo contra a miséria do poder a alegria do ser. Esta é a revolução que nenhum poder controlará – porque o biopoder e o comunismo, a cooperação e a revolução continuam juntos, em amor, simplicidade e também inocência. Esta é a irreprimível leveza e alegria de se ser comunista.”










(Trechos finais do livro Império, de Antonio Negri e Michael Hardt)

sexta-feira, abril 10, 2009

Cervejas, cigarros e a velha raça humana

Duas ou três horas? Não sei há quanto estamos aqui nessa mesa engordurada, bebendo essas cervejas geladas nessa noite abafada... Quando cheguei, ainda tava claro; não tenho relógio e não vou tirar o celular do bolso pra ver as horas, aliás, qual o motivo de estar pensando no tempo? Ela chegou, perguntou se não tinha cadeira e um amigo levantou e pegou uma numa mesa próxima, mas quando ele foi ao banheiro ela tomou a cadeira na qual ele estava e se sentou ao meu lado. Reclamava da faculdade, dos professores, dos idiotas dos colegas, da mãe que não a deixava em paz, do namorado que não queria fazer ménage, de que já estava ficando sem cigarros e volta e meia, entre uma reclamação e outra, colocava a mão esquerda na minha coxa direita e falava alguma besteira e sorria. Tinha uma bunda grande e bonita, um rosto mais ou menos e uma barriguinha a mais do que devia ter... Reclamava, reclamava, colocava a mão e sorria.... Ah, também pedia cigarros, eu não fumo cigarro, pedia pros outros, pra qualquer um, pra todos. Ela parecia nunca ter cigarros, mas sempre querer fumar. Foi ao banheiro, que merda ser mulher e ter que ir ao banheiro de um pé sujo como esse, imundo, fedido, com a porta sem tranca... Quando voltou, ficou em pé atrás de mim com as mãos nos meus ombros fazendo uma massagem chata e repetitiva. Chega um sujeitinho meio gordo, de cabelo raspado, que vive fazendo barulho por causa de políticas estudantis: “vote na chapa dois” ou “vote na chapa um”, sei lá. Senta-se no lugar vago, ao meu lado. Ela pára com a massagem nos meus ombros:

- Porra, esse é meu lugar, Tavinho. Pegue outra cadeira pra você. – ele sorri, sem graça, se desculpando, levanta, pega outra cadeira e a coloca grudada na dela. Fica, então, falando das eleições do C.A. do curso de comunicação, dos artigos que escreve sei lá pra onde... Figurinha bizarra, a cada afirmação olha pra garota e tenta descobrir se ela o aprova. Ele quer que sua chapa seja eleita, provavelmente no futuro será vereador, deputado ou tesoureiro de algum partido tão bizarro e mesquinho quanto ele. Me conhece, pelo jeito, pois tenta puxar assunto falando sobre os rumos da esquerda e coisa e tal. Sorrio sem vontade, ao menos acho que sorrio, mas não respondo. Então, desiste de falar comigo e passa a falar alto, pra todos na mesa, sempre sorrindo e buscando a aprovação da garota. Só que ela ta com a mão na minha perna e submersa em pensamentos chatos e ainda murmurando coisas sobre a mãe ou o namorado. Não ouço nenhum dos dois, bebo lentamente minha cerveja, jogo um pouco de sal na mão e lambo... Vou mijar e, quando volto, um amigo está gritando, ameaçando o futuro vereador ou tesoureiro. Briga de bêbado é sempre chata. Ainda quero beber mais, então nada de briga. Entro no meio, peço pro meu amigo se sentar e empurro o outro fulano fazendo-o se sentar. Ele olha pra mim e grita:
- Hei, camarada, não precisava empurrar!
- É, não precisava. – bebo minha cerveja e a garota novamente enche meu copo e dá um gole antes de devolvê-lo. Meu amigo ainda quer briga. Eu não. Quero beber. Então falo:
- Cara, deixa quieto, vamos beber.
- Mas esse Tavinho é muito chato, chega aqui na mesa e quer monopolizar a conversa...
- Deixa ele, vamos beber – olho pro tal Tavinho e proponho:
- Você não vai mais monopolizar as conversas, não é? Você quer só beber numa boa...

- Claro, quero beber e conversar, teu amiguinho que é muito esquentado. - meu “amiguinho esquentado” quase se levanta novamente, mas meu irmão ta lá ao lado e pede pra ele ficar tranqüilo. O garçom velho e cansado traz batatas fritas e lingüiça calabresa com cebolas, todos comem, alguns se levantam, fingem fazer contas e jogam alguma quantidade de dinheiro na mesa, se despedem, beijos, apertos de mãos, tapinhas nas costas. Ficamos no bar, eu, meu irmão, dois amigos, o vereador/tesoureiro e ela. Kafka, jazigos perpétuos, a loirinha de piercing que faz publicidade e cheira muito pó, a morena que já chupou a todos, as FARC, povoam nossas conversas. O bar vai fechar, pagamos a conta, vamos pro boteco menor que ainda está aberto do outro lado da rua. Mais cerveja. Ela pede cigarro, ninguém mais tem, Tavinho se levanta pra ir comprar na padaria ao lado, volta sorrindo e enquanto a garota fuma, fica debruçado sobre ela, falando palavras moles. Ela me olha pedindo socorro. Sorrio, na verdade não devo ter sorrido, acho que to muito desanimado pra sorrir, e continuo conversando com meu irmão. Ela se vira pra mim e dá as costas ao tesoureiro, pega meu copo e bebe, depois coloca mais cerveja. Falo uma ou duas coisas, besteiras sem importância, pros meus amigos e pro meu irmão e de repente o fulaninho se levanta gritando:
- Prepotente! Você é um prepotente do caralho. – ai, que saco, lá vai ele arrumar briga com meu amigo, dessa vez vou deixar rolar, não tenho mais energia pra separar. Mas aí vejo que ta todo mundo olhando pra mim... Então eu sou o tal “prepotente do caralho”. É, deve ser isso:
- Que disse? – quando perguntei, ele parou um instante, olhou pra mim e depois pra garota e pros meus amigos e me apontou o dedo:

- Prepotente! Acha que é quem? – gritou, meio esganiçado e cuspindo involuntariamente... É estranho como essas coisas acontecem, não é? De um segundo pro outro nossas veias saltam, sentimos o rosto queimar e o suor escorrer e estamos prontos para saltar sobre alguém e lhe arrancar dentes, ou até fazer pior que isso. Quando percebi, o estava segurando pelo pescoço, torcendo para que tentasse me dar um soco, mas no mesmo instante meu irmão me puxou e os dois amigos se colocaram entre nós. Sentei e bebi meio copo de cerveja, enquanto isso meu irmão tentava convencer o infeliz a ir embora, mas ele devia achar que seria humilhação demais sair agora, mesmo estando assim tremendo como estava; o homem é bicho engraçado e por vezes o medo de ser humilhado é maior que o medo de um traumatismo craniano... Vinte minutos depois ele dizia para bebermos mais que seria por conta dele, que homens como nós não deveriam nunca agir assim, que estava arrependido e que isso era coisa da bebida... Bebemos por mais uma hora, uma hora e meia, não sei. Ele falava e sorria e falava e nem mais tremia, eu o olhava nos olhos, ele desviava o olhar, pedia mais uma cerveja, acendia mais um cigarro... Me levantei, puxei a garota pelo braço:
- Vamos lá pra casa. – quando me ouviu, ela sorriu e me abraçou, a afastei de leve e a segurei pela cintura e fomos andando, ela ao meu lado e eu com a mão em sua grande e bela bunda. Eu nem tava afim da garota, mas a fodi a noite inteira... Sei lá, vai ver sou mesmo um “prepotente”... O homem é um bicho engraçado...

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Cicatrizes urbanas, massa de gente e de luz




...desde garotinha vi que era assim, tudo meio névoa, meio fábula. Vestidinhos feitos em casa, babadinhos, bordados, mamãe fazia vestidinhos lindos que eram orgulho meu e das primas. Tinha um branquinho que quando eu usava era pomba voando pela rua de terra e era um tal de “vai sujar a roupa, menina, pára de correr!”; correr nada, voar, mas ninguém entendia, ninguém nunca entende névoa e fábula. “Vem aqui, você ta linda assim de branco”; e era mão na cintura, na perna, no bumbum, é, eu dizia “bumbum”. E ele encostava as coisas em mim e suava aquele cheiro insuportável de cachaça e fumo de corda e eu não sentia nada, nem medo, nem tristeza, nem nada... acho que não, acho que não sentia e queria era voar, ser pomba e ser fada. E tinha a missa, o padre e o incenso que trazia aquele mundo de fumaça e de anjos, mas ninguém entende de anjos-no-incenso, e tinham aquelas velhas de preto e de véu rezando com um ódio que só as velhas de preto conhecem, e a missa era tão mais delas que dos anjos... E a escola... na escola tinha a professora tão linda e tão boa, mas tinha muito mais, tinha o suficiente pr’eu voar pra longe. E chegando aqui, eram só luzes e carros, e tudo tão grande e eu tão pequena; São Paulo era massa de luz, de gente e de fumaça-sem-anjos. A noite era sempre mais bonita e brilhante, mas amanhecia e tudo era cinza e pichado. Mas desde sempre acho que as pichações têm lá sua dignidade, são respostas mais que justas de moleques esmagados, são não só o grito de “existo”, mas também ataques a quem os esmaga, são cicatrizes que deixam na cidade, pra mostrar que a luz dela é falsa e que muita gente chora em cada beco. Elas são o que de mais digno existe em São Paulo... mas não são névoa nem fábula, são gritos de dor e de guerra. To tão cansada, não havia espaço pra voar no interior de minas, na minhinfância perdida, e nem há vôo aqui na cidade grande, aqui ninguém voa e pomba é bicho odiado, é rato que voa e que caga em cabeças e calçadas, como se todos não fossem ratos cagões em cidades como São Paulo. E é sempre assim: “mina, senta aqui comigo que te pago uma breja”, “mina, você é tão linda, quer um doce, quer um baseado?”, “quer ir ao meu apê?”, e é suor com cheiro de perfume e é olhar de pegue-um-táxi-e-não-me-ligue e é gente de bem, com faculdade, com dinheiro que bate, que cospe e que fode. E ninguém sabe voar, tão todos tão presos e ocupados em prender que ninguém tem olhos pros olhos do outro. E to tão cansada e daqui de cima, tudo até que vira fábula, os carros tão pequenos lá embaixo formam esses rios de luzes vermelhas e amarelas e cada uma dessas janelinhas aqui nos prédios parece estrela... e se agora da minha janela eu voasse, ninguém iria notar, mas entre estrelas e rios de luzes tudo seria névoa e fábula...

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Hélio Gracie

Morreu Hélio Gracie, o criador do Jiu Jitsu brasileiro, comprovadamente a arte marcial mais eficiente que existe. Ele foi um homem que das suas fraquezas gerou uma força até então inimaginável. Se fosse fisicamente forte, não teria tido motivos para desenvolver todas as técnicas de alavancas que permitem que o menor e mais fraco subjugue o adversário. E o Jiu Jitsu Gracie é mais do que um complexo sistema de combate, é uma ferramenta de formação de caráter que mudou pra melhor a vida de muitas pessoas, inclusive a minha. Devo muito ao Mestre Hélio, que indiretamente, por meio da arte que criou, me ajudou a ser mais forte, calmo, disciplinado, persistente, resistente e corajoso. Minhas lutas pessoais, sociais, revolucionárias são também reflexo do que aprendi com as experiências que tive e tenho no tatame. Me despeço aqui do nosso Grande Mestre, e deixo meu profundo sentimento de gratidão.



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Abaixo, posto uma entrevista do mestre Rickson Gracie, para o site da revista Tatame, na qual fala sobre a morte de seu pai, Hélio, e a expectativa em relação ao desempenho de seu filho, Kron, (abraçado a ele na foto abaixo) no Campeonato Europeu de Jiu Jitsu que está acontecendo nesse final de semana, em Portugal:



Nos bastidores do segundo dia do Europeu de Jiu-Jitsu, que acontece em Lisboa, Portugal, Rickson Gracie passou todo o tempo cochichando ao pé do ouvido de seu filho, Kron, que se prepara para entrar em ação hoje na disputa do peso. Em conversa com a TATAME, Rickson falou sobre a expectativa para o desempenho do filho, que não luta desde o Mundial 2008, nos Estados Unidos, e comentou a morte de seu pai, o Mestre Hélio Gracie, na última semana. Confira abaixo o bate-papo com Rickson em Portugal.

Como você reagiu à notícia da morte do seu pai?

Em primeiro choque, por estar aqui de longe fazendo trabalho, vem aquele sentimento de perda da parte física, da companhia, do sorriso, do abraço... A gente chora um pouquinho, mas, passando essa onda imediata de surpresa e de uma dor bem terrena, vendo em uma perspectiva mais geral, a gente vê que o nosso grande Mestre fez a volta toda do círculo. Ele não só viveu 95 anos com saúde, como até mais ou menos uns cinco dias atrás, ele nunca tinha entrado em um hospital. Ele deixou um legado, um tesouro, completou todos os sonhos que ele tinha na cabeça, tanto pra ele quanto ver os filhos dele envolvidos. Ou seja, ele teve uma vida que só se pode agradecer. Quisera eu um dia chegar lá. Então não é uma coisa chocante, a gente tem que esperar que isso aconteça um dia, ninguém vive para sempre. Então, dentro dessa naturalidade um pouco mais espiritual, eu acho que agora ele se transformou realmente, se liberou daquele corpinho velho e cansado que ele estava, e agora ele vai estar aí vendo o neto lutar, vai estar impulsionando e desenvolvendo, dentro de uma forma espiritual, essa continuidade desse compromisso que nós, que amamos o Jiu-Jitsu, temos pra levar à frente. Então é uma coisa que é só amor, é só felicidade, agradecimento. É continuar nossa vida e mantê-lo vivo através do nosso Jiu-Jitsu.

Como você se sentiu em não poder estar presente ao seu funeral?

Me senti feliz de pelo menos estar aqui trazendo o neto dele para o que ele sempre amou e sempre fez. Se eu estivesse em uma festa nas Bahamas, se estivesse passeando de férias, eu ia estar realmente entalado, com um palito entalado na garganta. Mas, diferente disso, eu sei que ele saiu de lá e veio pra cá. Então é uma coisa que eu estou sabendo que ele está feliz, está dançando no céu com a família e os amigos que já se foram e está apreciando toda essa festa aqui, como ele gosta de ser lembrado, em cima de uma festa.

Como o Kron reagiu à morte do Hélio? Como espera que ele se saia no Europeu?

Evidentemente ele é um garoto, não tem a mesma evolução espiritual para entender uma partida, ele realmente sentiu muito, mas ele está muito bem treinado, muito bem focalizado e está sabendo que para representar, para dignificar e para tentar dar essa medalha pro avô, ele vai ter que recrutar todo o foco, toda calma, toda paz, toda serenidade e técnica que ele tem. Eu acredito que ele vai colocar tudo isso junto e vai ser um bom adversário pra qualquer um que esteja na frente dele, mas não se pode antecipar nada, pois a luta a gente resolve depois que bate o gongo. Estou aí por ele, vamos ver. Ele está bem preparado. Só estou ajustando cada vez mais preciso do que ele sabe fazer, mas isso desde garotinho.

Quais são os seus planos para 2009?

Os primeiros seis meses farei seminário pelo mundo, EUA, Japão etc. E no segundo semestre eu continuo fazendo em todo o Brasil, em São Paulo, Minas Gerais, Florianópolis etc. Vou continuar nessa sequência, porque vejo que o meu serviço não se enquadra mais dentro de uma bandeira. Vejo que eu, como uma referência do Jiu-Jitsu, com tantos admiradores e tantas pessoas que querem aprender o meu Jiu-Jitsu, estou compromissado a elevar o nível, compromissado a trazer uma visão completa do Jiu-Jitsu, que também não é só competição. Tem uma parte psicológica, que eu acho que é a formação do homem através do Jiu-Jitsu. E é baseado nesse serviço que eu vou me empenhar o resto da minha vida. Tenho uma luz dentro de mim que realmente começou a brilhar a partir do momento que eu me aposentei das lutas e estou me dedicando a servir através do Jiu-Jitsu. Isso é uma coisa que só está me dando alegria.

Qual a mensagem que você manda para os fãs após a morte de seu pai?

Para os fãs que competem ou que lutam e praticam o esporte, que continuem praticando, pois o professor vai estar vivo dentro do quimono de vocês. Para os fãs e amigos que não praticam, podem ter a certeza que o grande Mestre viveu uma vida feliz e completa, e que esse amor é exatamente a razão de toda a nossa existência. Acho que ele simplesmente saiu do corpo, mas Helio Gracie sempre foi e sempre vai ser o criador do Brazilian Jiu-Jitsu, o cara que realmente fez a diferença e que é a expressão máxima do que a gente faz hoje.