segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Schopenhauer: as palavras e a flecha como possibilidades de resistência


O livro “A arte de escrever” é composto por ensaios que tratam da escrita e foram retirados da obra original “Parerga und Paralipomena” (1851) do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Ao todo, são cinco capítulos escritos com vigor e agressividade: Sobre a erudição e os eruditos, Pensar por si mesmo, Sobre a escrita e o estilo, Sobre a leitura e os livros e Sobre a linguagem e as palavras.

Com desprezo e raiva, o autor denuncia a decadência cultural da Alemanha e da Europa: acusa a crítica literária de colaborar com editoras e autores que só querem tirar dinheiro do público; ataca os filósofos que adotam propositalmente um estilo de escrita complexo ao exagero para que seus textos pareçam ter mais conteúdo do que realmente têm; torna público seu desprezo pelos eruditos que passam a vida a ler, sem serem, entretanto, capazes de formular um pensamento próprio; compara o especialista, o técnico, o cientista, com o pensador que por meio de seus estudos busca a verdade - e não o dinheiro ou o status social. Pelos temas, podemos perceber a atualidade destas páginas escritas na metade do século IXX.

Enquanto lia “A arte de escrever”, fiquei tentando imaginar o que Schopenhauer pensaria do mundo contemporâneo: dos livros de auto-ajuda; de nossas cretinas listas de best-sellers; da perda acelerada do gosto pela leitura, que cada vez mais é substituída pela televisão e outras mídias de massa, em nossa sociedade; da educação técnica e voltada ao mercado; do culto às celebridades midiáticas; da ditadura da indústria cultural. Entretanto, constatei que a verdadeira questão é se estamos construindo um mundo que em breve não mais será capaz de criar novos Schopenhauers, Espinosas, Deleuzes, Foucaults, Sartres ou Nietzsches. Futuramente, serão abortados os nascimentos de novos verdadeiros pensadores devido à total falta de condições de possibilidades para que tais existências sejam cultivadas?

A velocidade vampiriza nossas vidas, o culto ao consumo torna regra o descartável, a mentalidade da objetividade técnica e da eficácia tenta nos convencer de que pensar o pensamento é atividade risível. O que estamos nos tornando? Que caminho estranho é este que escolhemos? Como resistir ao próprio movimento social e histórico sem ser esmagado é o problema a ser enfrentado.

Talvez apenas reste escrever textos e lançá-los ao mar com a esperança de que algum sobrevivente do progresso um dia os tire da garrafa e que, então, dentre tudo o que fomos capazes de produzir, algo cause uma forte ressonância e salvemos uma vida, uma mente. Resta a esperança do contágio – como já disse em outro momento. Encerro este post com a imagem que há muito me marcou: a do pensador sendo um arqueiro, que por meio de seus textos atira idéias ao ar sem saber o peito de quem uma delas poderá um dia atravessar.

“A palavra dos homens é o material mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sensação passageira com palavras mais apropriadas, aquela sensação vive através de séculos nessas palavras e é despertada novamente em cada leitor receptivo”[1]


[1] Schopenhauer, L&PM, 2006

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Bukowski e a indústria cultural


Acabei de ler o livro “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”, que é uma seleção de trechos do diário escrito por Charles Bukowski em seus últimos anos de vida. O ódio à mediocridade demonstrado pelo escritor norte-americano, nascido na Alemanha, me fez lembrar a afirmação de Deleuze de que a vergonha de pertencer à raça humana é fonte de potência criadora tanto na filosofia quanto na literatura e na arte. Transformar vergonha e asco em potência criadora... Deleuze sabia realmente das coisas.

A cada vez que ia ao hipódromo (e ele ia quase todo dia), Bukowski reabastecia seu peito de ódio ao vazio que é a vida da grande maioria de nós. Quando se sentia sem inspiração precisava trazer à tona toda essa raiva. Abaixo, transcrevo um fragmento do último dia de seu diário:

“Por que há tão poucas pessoas interessantes? Em milhões, por que não há algumas? Devemos continuar a viver com esta espécie insípida e tediosa? Parece que seu único ato é a violência. São bons nisso. Realmente florescem. Flores de merda, emporcalhando nossas chances. O problema é que tenho que continuar a me relacionar com eles. Isto é, se eu quiser que as luzes continuem acesas, se eu quiser consertar esse computador, se eu quiser dar a descarga na privada, comprar um pneu novo, arrancar um dente ou abrir a minha barriga, tenho que continuar a me relacionar. Preciso dos desgraçados para as menores necessidades, mesmo que eles me causem horror. E horror é uma gentileza.

“Mas eles pisoteiam a minha consciência com seu fracasso em áreas vitais. Por exemplo, todos os dias, volto do hipódromo apertando o rádio em diferentes estações, procurando música, música decente. Tudo é ruim, insípido, sem vida, sem melodia, indiferente. Mesmo assim, algumas dessas composições são vendidas aos milhões e seus criadores se consideram verdadeiros Artistas. É horrível, uma idiotice terrível entrando em jovens cabeças. Eles gostam disso. Cristo, dê merda a eles, e eles comem. Não conseguem discernir? Não conseguem ouvir? Não sentem a diluição, o mofo?

“Não posso acreditar que não haja nada. Continuo tentando novas rádios. Meu carro tem menos de um ano, mas a tinta preta do botão que aperto já está totalmente gasta. Agora o botão está branco, marfim, olhando para mim.

“Bem, é, existe a música clássica. Tenho que me acostumar com isso. Mas sei que ela vai estar sempre lá para mim. Escuto isso três a quatro horas por noite. Mas ainda continuo procurando outro tipo de música. (...) Pense em todas as pessoas vivas que nunca ouviram música decente. Não se admira que seus rostos estejam caindo, não se admira que matem sem pensar, não se admira que esteja faltando o coração.

(...)

“Os filmes são tão ruins quanto a música. Você ouve ou lê a crítica. Um grande filme, dizem. E daí saio para ver o tal filme. E sento lá me sentindo um grande idiota, me sentindo roubado, enganado. Posso adivinhar a próxima cena antes de acontecer. E os motivos óbvios dos personagens, o que os move, o que desejam, o que é importante para eles é tão infantil e patético, tão enfadonho e grosseiro. As partes românticas são irritantes, velhas. Bobagens preciosistas.

“Acho que a maioria das pessoas vê filmes demais. E, com certeza, os críticos. Quando dizem que um filme é ótimo, querem dizer que é ótimo em relação aos outros filmes que viram. Perderam a visão geral. São martelados com cada vez mais filmes novos. Simplesmente não sabem, estão perdidos no meio daquilo. Esqueceram o que é realmente ruim, que é a maior parte do que assistem.”[1]


[1] Páginas 147-149. Bukowski, Charles. Porto Alegre: L&PM, 1999.