São homens que humilham,
estupram, matam e se divertem durante o processo, filmando e depois divulgando
as imagens das suas vítimas mulheres na internet.
Era de homens que Dostoievski
falava, pela boca de Ivan Karamazov, quando contou que na Bulgária “queimam, degolam, violentam mulheres e
crianças, pregam as orelhas dos prisioneiros a uma cerca com pregos, os deixam
assim até o dia amanhecer e de manhã os enforcam”.
São humanos, sem chifres ou dentes
afiados, que diariamente, em alguns países, arrancam a pele de cachorros vivos,
os queimam e torturam lentamente para, por fim, os jogarem ainda conscientes em
caldeirões de água fervente – e tudo isso, por acreditarem que quanto mais
sofrerem antes da morte, mais saborosa será a sua carne.
E, sejamos justos, são pessoas
comuns que em nosso país consideram uma atitude de mau gosto alguém postar vídeos
que mostrem vacas e porcos apavorados caminhando em fila indiana para serem assassinados;
jacarés e raposas tendo suas peles arrancadas; lagostas sendo cozidas vivas;
bezerros imobilizados por toda sua curta existência para que sua carne seja
mantida tenra; mas julgam completamente normal o churrasco do final de semana
ou a bolsa, a carteira, o sapato e o casaco fabricados a partir de pedaços de
corpos de seres inocentes mutilados.
Não há monstros. Ou melhor, se
existem, os monstros não são ELES, somos nós. Quanto mais apontamos para a
barbárie e dizemos que são perpetradas sempre pelos outros, mais fugimos das
condições de possibilidades de enxergarmos as causas de tanta dor. Ao
entendermos que temos em nós mesmos a semente da monstruosidade, damos o
primeiro passo para combatê-la.
Se TRINTA homens estupram uma
garota, a filmam desacordada, seminua, sangrando e riem para a câmara fazendo
piadas antes de divulgarem tal vídeo, isso mostra que não se tratam de exceções
sociais, mas do resultado de uma forma de enxergar as mulheres e a si mesmos. O
sádico, o cruel, o covarde só sente que é possível agir assim diante de uma
câmera porque de alguma maneira percebe o seu ato como justificável. Por isso o
feminismo é extremamente necessário, para nos obrigar a encarar o quão doente
está a nossa sociedade devido ao machismo. O feminismo já salvou muitas vidas e
ainda tem muito trabalho pela frente.
Precisamos muito (todos nós) do
movimento negro, do LGBT, dos que questionam a forma como se dá a globalização.
Precisamos dos que combatem a ideia de que o Capital está acima da vida, dos
que arriscam sua sanidade para mostrar a que são submetidos os animais trucidados
pelos nossos caprichos. Nós necessitamos dos direitos humanos para nos salvar
de nós mesmos.
As maiores crueldades já foram
consideradas normais. Muitas continuam sendo. Escravidão, massacres, pedofilia legitimada
pela instituição do casamento, mulheres queimadas em fogueiras por religiosos, meninos
cantores castrados para manterem sua voz aguda, seres assassinados em massa para
satisfazerem nosso paladar, a lista é interminável.
A monstruosidade humana é
alimentada diariamente por discursos que tentam torná-la invisível
normatizando-a, direcionando-a contra as chamadas minorias, dando a ela ares de
normalidade. Ao acharmos que os monstros são apenas os outros, estamos nos
negando a encarar o fato de que forças sociais podem simplesmente transformar
cada um de nós em executor.
Para encerrar, um trecho de um
relatório escrito por um burocrata, registrado por Foucault, relatando, com a frieza técnica que se espera de sua classe, como o
Estado punia um infrator. Tudo isso em frente aos olhares de uma multidão de
homens, mulheres e crianças que em grande parte se divertia com o que via: “um executor, de mangas arregaçadas acima dos
cotovelos, tomou umas tenazes de aço (...) atenazou-lhe primeiro a barriga da
perna direita, depois a coxa, daí passando às duas partes da barriga do braço
direito; em seguida os mamilos. Este executor, ainda que forte e robusto, teve
grande dificuldade em arrancar os pedaços de carne que tirava com suas tenazes
duas ou três vezes do mesmo lado ao torcer (...)”. A vítima, “que gritava muito
sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou
com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a
fartamente sobre cada ferida”.